Quem deve a Quem? Ou: Porque as cotas raciais não se justificam perante a escravidão

09/12/2013 22:47

Ensaio publicado em quatro parte em minha coluna no site: https://direitasja.com.br/2013/11/30/quem-deve-a-quem-ou-porque-as-cotas-nao-se-justificam-perante-a-escravidao-parte-1/

 

Por. Alessandro Barreta Garcia

            Para Fausto (2009) sobre a escravidão no Brasil, a escravidão na África é apenas um “Dizia-se”:

 

“Dizia-se que se tratava de uma instituição já existente na África, e assim apenas se transportavam cativos para o mundo cristão onde seriam civilizados e salvos pelo conhecimento da verdadeira religião” (p. 26).

 

            Nota-se que para Boris Fausto a escravidão na África anterior aos descobrimentos era apenas um relato, o que de certa forma coloca em dúvida a tese da escravidão naquele continente. Todavia, o contato com a África levou Portugal a iniciar seu processo de escravidão no Brasil. Observa-se que o tráfico de escravos negros já era existente na África muito antes da chegada dos portugueses (RISÉRIO, 2004; GIORDANI, 2010). Admitindo nesse sentido que Portugal passou a utilizar-se desse mesmo processo já amplamente utilizado pelos africanos (MEIRELES, 2009).

            De acordo com Carvalho (1999, p. 233) “Quando os portugueses chegaram a Angola a existência de indivíduos reduzidos à condição de escravos já era ali uma realidade, como sucedia em muitas regiões de África”. No Brasil, o reflexo da escravidão ainda é evidente, e devido a esta escravidão, o problema das cotas em universidades se vincula a tese do racismo, bem como, ao sentimento de ressarcimento de uma dívida com os descendentes dos africanos. Contudo, de acordo com Giordani (2010), a escravidão na África era tão importante que chegou a adquirir status de fundamento de prosperidade econômica.

            Dopcke (2001) aponta que:

 

Quando os portugueses chegaram pela primeira vez, em 1471, nos Akan, na região que desde então foi chamada de Costa do Ouro, com o objetivo de contornar o comércio transaariano de ouro e comprar diretamente das minas, descobriram que umas das poucas mercadorias que os Akan aceitavam em troca eram escravos. Entre 1500 e 1535, os portugueses compraram entre 10.000 e 12.000 escravos no reino de Benim (e nos Igbos vizinhos) para satisfazer a demanda de mão-de-obra escrava na Costa de Ouro (DÖPCKE, 2001, p.34).

 

            Dessa forma, como é possível discutir a questão das dívidas históricas? Se as cotas servem para pagar a dívida do passado é preciso questionar tal validade. Segundo Carvalho (2006) em seu livro: O imbecil coletivo. O filósofo pergunta: Quem deve a quem? Neste caso, os judeus não devem receber indenização por terem sido escravizados pelos africanos? Sob essa perspectiva (da dívida histórica), quem deve a quem? Juridicamente ninguém pode herdar uma dívida, exceto o espólio (conjunto de bens) em um dado momento, e não eternamente.

            Conforme Risério (2004):

 

Na África, o tráfico gerou riquezas incrementou divisões sociais preexistentes, consolidou formações estatais. Os reis do antigo Daomé e a classe dominante dos grupos nagôs ou iorubás disputaram entre si o monopólio da exportação de escravos para o Brasil, despachando até diversas embaixadas oficiais à Bahia e a Portugal para tratar do assunto. (RISÉRIO, 2004, p. 65).

 

            Para Risério (2004) até em Palmares existiam escravos, pois, vários homens eram capturados para trabalharem nas plantações dos quilombos. Ganga Zumba e Zumbi tinham por exemplo, seus próprios escravos.

 

            Paiva (2009) acrescenta que:

 

Escravos e a enorme população de ex-escravos e de seus descendentes diretos nascidos livres também legitimaram o regime escravista, uma vez que tornar-se proprietário de escravos foi alvo primeiro em suas vidas, desde, inclusive, o período de cativeiro. Muitos lograram alcançar o objetivo, até mesmo antes de se libertarem, saliente-se (PAIVA, 2009, p.18).

 

            Giordani (2008) lembra que o povo hebreu foi libertado da escravidão egípcia por Moisés no qual recebeu a missão de Javé. Segundo Souza (2003), os egípcios escravizam outros povos desde 2680 a/C. A glória do faraó era também expressa pela quantidade de escravos capturados. Ou seja, a África era também uma grande produtora de escravos. Ademais os escravos africanos eram vendidos por africanos tanto para mundo islâmico, Índia como também para as Américas. Antes dos colonizadores, não só africanos eram vendidos, más também escravos brancos.

            Conforme Giordani (2008), muitas eram as classes sociais no antigo Egito, desde as classes dominantes até as dominadas. Entre estas últimas os escravos. Para Giordani (2008), o “Livro dos Mortos” previa uma espécie de defesa aos trabalhadores (operários), como também aos escravos, esses não poderiam ser submetidos ao excesso de trabalho ou maus tratos.

Por outro lado:

 

“A condição dos escravos utilizados nas grandes obras públicas era extremamente cruel. Nas minas, nas pedreiras, nas construções monumentais, milhares de escravos deixavam a marca de seu ingente esforço e de seu sofrimento” (GIORDANI, 2008, p. 85).

 

            Na prática, pode-se deduzir que os escravos não tinham a mesma sorte daquela vivenciada pelos indivíduos pertencentes à classe dos felá ou camponeses. Discute-se ainda que tipo de escravidão se realizava na África, por punição, dívida, crime, doméstico ou de parentesco.

            Segundo Dopcke (2001):

 

O fato de que os monumentos egípcios foram construídos utilizando ampla mão-de-obra escrava é bem conhecido. Muitos reinos pré-coloniais, como Songai e Benim, citados no documento pela sua grandeza, usavam também escravos em grande número, conduziam regularmente expedições armadas para a captura de escravos nas comunidades vizinhas e mantinham um tráfico importante de escravos com a África do Norte e o Próximo Oriente, através do deserto do Saara (DÖPCKE, 2001, p.34).

 

            Alguns eram escravizados para suprir as necessidades de sobrevivência. Já para reprodução, as mulheres africanas eram escravizadas e vendidas para o mundo árabe, quanto mais bonita a escrava, mais cara ela se tornava. Com as novas gerações provenientes da reprodução com as escravas, ela não geraria novos escravos (a segunda geração seria livre), novas remessas sempre eram importantes, o que de fato alimentaria o mercado interno (SOUZA, 2003). Nesse caso, são os árabes que incentivaram uma maior comercialização de escravos dentro da África, não o europeu.

            Lovejoy (2002) ressalta que a escravidão na África ainda era percebida em pleno século XX e que os africanos se beneficiavam economicamente de tal processo. Sendo, portanto legítima no meio africano, a escravidão se realizava por meio de guerras entre tribos, crimes, roubo, adultério, bruxaria etc. Os castigos também eram comuns na África, e os escravos eram submetidos a chibatadas, privação de alimentos entre outras formas de penalidade. O mundo Islâmico entre os séculos VIII, IX e X era o maior receptor de escravos africanos, utilizando-os em serviços militares, domésticos e até administrativos.

            Giordani (2010) destaca que para as plantações do Iraque, buscava-se mão de obra escrava em meados do séc VIII. No Iraque os escravos africanos eram utilizados nas plantações de cana de açúcar e suas realidades eram infra-humanas, pois os árabes não gostavam de executar trabalhos manuais, o que ocasionou a ampliação de uma já existente economia escravista (GIORDANI, 1985).

           

Mediante este sistema transatlântico foram embarcados, entre 1450 e 1900, em torno de 13 milhões de pessoas; dentre estes 9,6 a 11,8 milhões chegaram com vida nas Américas26. 42% delas foram para as ilhas do Caribe, 38% para o Brasil e menos de 5% para os Estados Unidos. Durante o mesmo período, cerca de 6 milhões de africanos foram vendidos no tráfico oriental (para a África do Norte, o Próximo Oriente e a Península Árabe, a Índia e as ilhas no Oceano Índico). Cerca de 8 milhões de escravos permaneceram também neste período, na própria África, sendo explorados pelos poderosos deste continente (DÖPCKE, 2001, p.35).

 

            Os poderosos deste continente eram Asante, Daomé, os reinos Ardra e Hueda no Golfo do Benin, os reinos de Ndongo, Kasanje e Lunda em Angola.  Para Carvalho (2009): “O racismo antinegro é pura criação árabe e, na Europa, não contribuiu em nada para fomentar o tráfico negreiro”. Ademais, se os africanos foram escravizados por africanos. Neste caso, como se delimita o recebimento das cotas aos descendentes africanos no Brasil? Como saberemos se quem recebe a cota é ou não descendente daquele que foi escravizado ou daquele que escravizou?

            Muita gente se beneficiou com o tráfico transatlântico de escravos africanos, os proprietários de terras nas colônias bem como os proprietários de terras na África. Deixaram muitos africanos e europeus milionários. Ao contrário do que senso comum sugere os escravos não eram vendidos a preço de banana, eram vendidos mediante produtos do tipo: têxteis, ferro, instrumentos agrícolas, armas, bebidas alcoólicas entre outros produtos.

            Aos defensores da tese que a riqueza dos países escravistas se dá intimamente ligada à exploração de mão de obra, os Estados Unidos provam o contrário, uma vez que o sul escravizado é compreendido como retrógrado e precisou ser combatido em beneficio do desenvolvimento do país no qual seria fruto da Guerra Civil (1861-1865). Quanto aos Ingleses, defende-se que sua riqueza foi advinda da agricultura e do comércio, e não do sistema escravista (DÖPCKE, 2001).

            Nestes termos, é difícil para não dizer impossível verificar ao certo quem deveria a quem, se é que alguém deveria receber uma reparação por conta da escravidão, uma vez que africanos e europeus se beneficiaram de tal processo histórico. Encontraremos certamente uma mistura de descendentes que escravizaram e daqueles que foram escravizados.

            Outra afirmação é que o continente africano foi profundamente abalado pelo sistema escravista. Contudo, Dopcke (2001) afirma que existem locais na África pelo qual não foram atingidos pelo processo interno e externo da escravidão e permaneceram estagnados assim como os povos afetados pelo escravismo interno e externo.

            Hoje, quando o IBGE pergunta de que raça o brasileiro pertence, fica a dúvida. Quanto em porcentagem, somos brancos, negros ou índios? Apesar dos estudos sobre evolução humana esta problemática ainda é evidente no senso comum (LEAKEY; LEWIN, 1981; LEAKEY, 1989; LARAIA, 2003). Para Santos, Palomares, Normando et al (2010) atribuir o termo raça por meio da cor de pele é um equivoco, pois a cor de pele não determina a ancestralidade.

            Por fim, a história é triste, tristeza esta irreparável, pois, na história não há dívidas por ancestralidade, isto é um equivoco dos nossos tempos. Querem atribuir à história algo que ela não pode oferecer. As cotas raciais no Brasil não só não resolvem o problema como também não contribuem para uma igualdade, muito pelo contrário, proporcionam uma desigualdade ainda maior, proporcionam um sentimento de inferioridade e de impotência frente às dificuldades da vida. Por mais dinheiro que se pague, nunca mudaremos o que passou, nunca seremos justos com aqueles que foram escravizados pelos africanos, nunca seremos justos com aqueles que foram escravizados pelos europeus.

            Quem vive hoje não é culpado por gerações anteriores, não é culpado pelos erros do passado. Ainda assim, podemos aprender com a história, buscarmos mudanças, entretanto, mudanças estas que nos façam crescer, sermos melhores e não ficarmos apenas vivendo em círculo, um círculo vicioso e muito perigoso. Precisamos aprender a perdoar, principalmente quando aqueles que pagam pelo passado, nada devem a este.

           

REFERÊNCIAS

CARVALHO, F. N. Aspectos do tráfico de escravos de Angola para o Brasil no século XVII: 1. prolegómenos do inferno. (In) BARROCA, M J, coord. - Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999.

CARVALHO, O. A África às avessas. Diário do Comércio, 14 de setembro de 2009a https://www.olavodecarvalho.org/semana/090914dc.html

CARVALHO, O. O imbecil coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. São Paulo É realizações, 2006.

DÖPCKE, W. O Ocidente deveria indenizar as vítimas do tráfico transatlântico de escravos? Reflexões sobre a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Intolerância Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata. Rev. Bras. Polít. Int. v. 44, n.2, p. 26-45, 2001.

FAUSTO, B. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

GIORDANI, M, C. História do mundo árabe medieval. 5ª edição Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

GIORDANI, M, C. História da Antiguidade oriental. 14ª edição Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

GIORDANI, M, C. História da África Anterior aos descobrimentos. 7ª edição Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

LARAIA, R. D. B. Cultura: Um conceito antropológico. Jorge Zahar – Rio de Janeiro, 2003, 117p.

LEAKEY, R, LEWIN, R. Origens. Tradução de Almeida, M. L. C.G. Editora Universidade de Brasília, 1981, 264p.

LEAKEY, R. As origens do homem. Tradução de RAMOS, V. Lisboa, Editorial Presença, Lda, 1989, 89p.

LOVEJOY, Paul. A Escravidão na África – Uma História de suas Transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MEIRELES, M. C. As conexões do maranhão com a áfrica no tráfico atlântico de escravos na segunda metade do século XVIII. Outros Tempos - Dossiê Escravidão, Volume 6, número 8, dezembro de 2009.

RISÉRIO, A. Escravos de escravos. Revista Nossa História. Biblioteca Nacional. Ano, 1, nº 4. 2004

PAIVA, E. F. Por uma história cultural da escravidão, da presença africana e das mestiçagens. Fênix (UFU. Online), v. 6, p. 1-24, 2009.

SANTOS, D. J. S, PALOMARES, N.B, NORMANDO, D, et al. Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Dental Press J Orthod, v. 15, n. 3, p. 121-124, 2010.

SOUZA, T. T. B. A. Escravidão interna na África, antes do tráfico negreiro. Vértices, Ano 5. n. 2 mai / ago, 2003.

 

Suas partes publicadas originalmente:

Parte (1)

Parte (2)

Parte (3)

Parte (4)